Texto publicado no Jornal Diário de Caratinga em 25/11/18
A frase acima transcrita é de Eduardo Galeano, famoso escritor e jornalista uruguaio, morto em 2015. Um grande homem, filho de um grande país. Um pequeno grande país.
O Uruguai, com toda a sua pequenez territorial, tem muito a nos ensinar sobre sua grandeza como nação. Um dos menores países da América do Sul, com uma população menor do que a da Cidade do Rio de Janeiro, praticamente sem recursos naturais, vítima histórica da disputa de poder entre os dois gigantes sul-americanos – Brasil e Argentina -, esse grande pequeno país tem uma das sociedades mais avançadas, mais harmônicas e menos desiguais de todas as Américas.
Conseguiu com muito sucesso adaptar-se à sua realidade, reconhecendo suas limitações e investindo naquilo que é efetivamente capaz de alterar a vida de qualquer pessoa, de qualquer sociedade, de qualquer país: a Educação. O Uruguai foi o primeiro país das Américas a ter uma educação primária universal, gratuita e obrigatória. Isso ocorreu nos idos de 1877, onze anos antes da libertação dos escravos no Brasil.
A partir desse fato, é possível compreender um pouco o porquê do vanguardismo desse país em todas as outras áreas.
Setenta anos antes dos outros países da região, o Uruguai aprovou a lei de divórcio, em 1907. A jornada de trabalho dos uruguaios é de oito horas semanais desde 1915, época em que os demais trabalhadores do mundo sequer tinham jornadas definidas por lei. Em julho de 1927, as mulheres votaram formalmente pela primeira vez na História da América Latina. Em 1932 o Parlamento aprovou a lei de voto para as mulheres em todo o território do Uruguai.
O Uruguai foi o primeiro país do continente a legalizar o aborto, em 1934. Mas a lei durou até 1937, quando foi revogada. Décadas depois o assunto voltou ao Parlamento e, em 2012, com respaldo da opinião pública, foi aprovada novamente a despenalização. Aqui cabe o registro do significado de “despenalização”, que ao contrário do que muitos desinformados pensam, não se trata de incentivar ou obrigar ninguém a abortar, mas, a não considerá-lo crime. Uma condição que tem feito com que o número de abortos despenque em todos os países em que foi adotada. Particularmente, sou contra o aborto, mas também entendo que esse é um assunto de consciência de cada um e não algo que o estado deva se intrometer. No caso do Uruguai, de lá para cá a mortalidade materna caiu e é a segunda menor do continente, depois do Canadá. Antes da lei, no Uruguai havia 33 mil abortos clandestinos por ano. Após a implementação da lei, os abortos despencaram para uma média de 9.500 por ano.
Em 2007, o Uruguai se tornou o primeiro Estado latino-americano a contar com uma lei de união civil entre pessoas do mesmo sexo. E, em 2013, foi um passo além, aprovando o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Em 2008, em sintonia com legislações escandinavas, o Parlamento aprovou uma lei que pune os pais que inflijam castigos físicos a seus filhos. Em 2009 o Parlamento aprovou a lei de eutanásia. Com ela, os doentes terminais podem expressar sua vontade de interromper tratamentos médicos invasivos para não prolongar a vida. A lei ficou popularmente conhecida como “lei do bom morrer”. Em 2013, o país aprovou a lei de regulação de produção e comercialização da maconha. Primeiro autorizaram a produção doméstica. E, por último, em julho de 2017, a venda em farmácias autorizadas, com uma quantia fixa por mês para cada comprador. Uma lei que, também, não incentiva e nem obriga ninguém a consumir maconha, mas que, pelo contrário, permite ao estado passar a ter algum controle sobre a sua produção, comercialização e consumo. Hoje, no Uruguai, não se vê drogados pelas ruas, tampouco facções criminosas controlando o tráfico. Lá também há cassinos, e ao contrário do que se pensa, não são perniciosos, inclusive eu e minha saudosa mãe, certa vez, tivemos a oportunidade de nos divertir em um deles.
Recentemente, os parlamentares da Câmara dos Deputados do Uruguai — pertencentes a todos os partidos políticos, da esquerda à centro-direita — aprovaram a lei que garante os direitos das pessoas transexuais, para que possam viver sem serem estigmatizadas.
O Uruguai possui o menor índice de percepção da corrupção da América Latina, segundo o relatório anual da ONG Transparência Internacional. O país, no continente, tem classificação idêntica à dos Estados Unidos e só perde para o Canadá. O Uruguai ocupa o topo latino-americano do ranking do “Índice de Democracia” elaborado pelo jornal britânico “The Economist”. É o único país com “democracia plena”. O Centro Regional para a Promoção do Livro na América Latina e Caribe patrocinado pela UNESCO indicou em 2017 que o Uruguai é o país da América Latina que mais publica novos livros per capita.
O Uruguai é considerado o país mais laico das Américas. O juramento de posse do presidente uruguaio exclui qualquer referência a Deus já que os lideres do Poder Executivo juram por sua honra pessoal e pela Constituição – dois elementos que nesse país, de fortes sentimentos liberais, são considerados mais fundamentais do que qualquer credo religioso. É claro que o presidente pode professar a sua fé e viver a sua religiosidade, seja ela qual for. O fato de o país ser laico – como acontece no Brasil, pelo menos na lei – nãos significa, de forma alguma, uma “motivação ao ateísmo”. Apenas significa que as atitudes do estado não são tomadas em função de uma ou outra crença, mas sempre baseadas na ética, na moral, comum a todos os cidadãos. Ou seja, o estado laico não proíbe cultos ou qualquer tipo de expressão doutrinária por parte da população, mas toma suas decisões sem considerar as “lideranças” religiosas, como no Brasil, em que o nome de Deus é utilizado em vão, de forma desrespeitosa, por parlamentares envolvidos até o pescoço em mentiras e contravenções.
O Uruguai está, em todos os indicadores de desenvolvimento sócio-econômico, muito à frente do Brasil e dos demais países da Região. A Criminalidade é insignificante e os uruguaios desfrutam de uma sociedade pacífica, harmônica, de uma vida tranquila e segura. Não se trata do paraíso, lá também há muitos problemas, mas esse país que já foi parte do Império do Brasil tem muito a nos ensinar.
Os brasileiros são alegres. Sim. Por fora. Porque escondemos uma profunda tristeza por vermos nossas mazelas seculares se perpetuarem sem solução. Os uruguaios são aparentemente tristes, mas interiormente, profundamente orgulhosos de seu pequeno país. Os brasileiros são multiculturais, tolerantes, pacíficos, religiosos, pluralistas. Os uruguaios são aparentemente taciturnos, conservadores. Mas aqui se mata mais do que na guerra do Vietnã, matam-se mulheres, homossexuais, negros e, a cada dia, crescem os crimes de ódio, o sectarismo religioso, a degradação ambiental, o individualismo, a falta de senso de coletivo, o desrespeito às regras básicas de convivência social. Em Montevidéu, os ônibus param nos locais corretos, o motorista aguarda o passageiro se sentar, praticamente todos estão sempre com um livro na mão, não há metrô, são poucos os viadutos, as calçadas não têm buracos, há pouco barulho. Percebe-se o senso de coletivismo e o grau de educação desse povo em todos os lugares.
Contrariamente a nós, os uruguaios são um povo maduro. Nós, aparentemente, ainda somos adolescentes, no auge de nossas contradições, inflados de hormônios. Mas o lado bom é que os adolescentes crescem, e o primeiro passo para esse crescimento é o reconhecimento de nossas imperfeições, de nossos problemas, de nossos vícios, de nossa realidade.
Esse passo já foi dado. Pela primeira vez, a triste realidade social brasileira escancarou-se nesses últimos anos. Já não a escondemos mais. Desconstruiu-se o mito de uma sociedade pacificada e hoje podemos nos ver como realmente somos: um povo mal-educado, mal preparado, racista, sexista, preconceituoso, violento e dividido, profundamente dividido.
Agora, nos resta consertar tudo isso, e para tanto, temos as nossas virtudes. Somos empreendedores, criativos, com uma energia social impressionante e dotados de todos os elementos para superarmos nossos problemas. Precisamos apenas, amadurecer!
Precisamos daquilo que os uruguaios descobriram há cem anos: educação para todos, com qualidade e liberdade para aprender e ensinar.
Laicidade absoluta, separando o domínio público, onde se exerce a cidadania, e o domínio privado, onde se exercem as liberdades individuais (de pensamento, de consciência, de convicção) e onde coexistem as diferenças (biológicas, sociais, culturais). Pertencendo a todos, o espaço público é indivisível: nenhum cidadão ou grupo de cidadãos deve impor as suas convicções aos outros e o Estado deve se manter absolutamente apartado de qualquer influência religiosa, de qualquer matiz.
Pluralismo e diversidade, reconhecendo-se o direito de cada um pensar e agir de acordo com suas convicções e respeitando-se o direito de cada um exercer, professar e ostentar suas preferências, opções, origens, etnia e valores individuais sem discriminação.
Em um momento, porém, onde tudo isso parece para nós uma utopia e a cada dia se exacerbam as tentações autoritárias, as visões maniqueístas e o conservadorismo medieval, resta-nos mais uma vez o socorro às sábias palavras de Galeano: “Somos o que fazemos, mas somos, principalmente, o que fazemos para mudar o que somos.”
* Eugênio Maria Gomes é escritor, professor e pró-reitor de Administração da Unec. Membro das Academias de Letras do Brasil (ALB) e Teófilo Otoni (ALTO). Presidente da ACL – Academia Caratinguense de Letras – e da AMLM – Academia Maçônica e Letras do Leste de Minas. Membro do MAC – Movimento Amigos de Caratinga – , do Lions Clube Caratinga Itaúna e da Loja Maçônica Obreiros de Caratinga.